sábado, 9 de janeiro de 2016

ATO I - A ARANHA

pequenas histórias

ANO I 
N.1 
São Paulo 
2016


Abril é o mais cruel dos meses.
T. S. Eliot, "A terra desolada"

ATO I 
A ARANHA 

Eric Ferreira Dantas

9 contos de Abril (Patuá, 2012)

Matei uma aranha. Era uma segunda-feira de dia nublado. Mês de Abril. Manhã confusa. Não sai de casa. Matei a aranha. Ela era pequena, suas patas porém eram grandes, tentaculares e assustadoras. Não entendo nada de aranhas. Podia ser venenosa, podia armar maldades contra mim, inserir seu veneno fatal em minhas veias, ou talvez sugar meu sangue quando eu estivesse num sono profundo. Acontece tanta coisa por aí. A aranha estava no lugar errado, na hora errada, na casa errada, no mundo errado. Tanto lugar pra ela fazer sua teia, justo na cozinha da minha mãe! Era uma persona non grata. A aranha. Tentei em vão procurar sua espécie numa volumosa enciclopédia de capa dura. Deve ser uma espécie nova, espécie rara, sei lá. Morreu. Morreu lentamente. Pensei em matá-la com uma violenta chinelada. Preferi aplicar o remédio, ou melhor, o veneno que também mata baratas, formigas, moscas e pernilongos. Tudo tem um preço neste mundo maravilhoso. Aranhas não são bem-vindas nos lares humanos, além de muitas serem realmente venenosas, uma real ameaça para nossa tão preciosa espécie. Também fazem muita sujeira com suas infinitas teias brilhantes, que quando são desfeitas assemelham-se a montes de poeira. Alimentam-se de moscas, pernilongos, pulgas, besouros e outros insetos que vacilam e caem em suas teias fatais. Comem lentamente seu alimento, se reproduzem sem qualquer delicadeza, espalham-se por toda casa, em cada canto uma aranha. Acham que são donas das paredes. As paredes são seu mundo particular. Observam durante todo o dia o cotidiano dos humanos. Minha família é estranha como qualquer outra família. Brigamos, discutimos, fazemos planos elevados, talvez até nos amamos de forma dissimulada e confusa, não importa, o bem e o mal habitam nosso coração, temos fé na vida, queremos paz e sossego, sombra e água fresca, nada de aranhas, nada de animais em gaiolas, nada de animais soltos livremente por aí, nada de animais. É nossa filosofia. Basta. Nos bastamos. Até com o vizinhos não queremos contato. Nunca tivemos amigos, no máximo recebemos visita de parentes, um mal inevitável, porém necessário. Queremos tranquilidade. Nada de aranhas. Eu mesmo só me sinto bem quando estou sozinho. Acostumei-me com a solidão. A introspecção me faz muito feliz. Gosto de me olhar no espelho e perceber o quanto envelheci. Envelheço sem perceber certos detalhes da vida, como a importância das aranhas no reino animal, no equilíbrio ecológico, e outras coisas supercomplicadas que são explicadas nos mínimos detalhes nos livros de biologia. Matei uma aranha. Impedi que ela habitasse minha casa. Matei-a e depois chorei. Chorei como se ela fosse meu semelhante. Chorei como se ela tivesse alma, ética e princípios morais. Nem sequer tive a condolência de enterrá-la no jardim. Joguei-a no lixo da cozinha entre os restos de comida já apodrecidos. Ela deu azar de ter morrido justo naquele dia. A natureza não perdoa. Até os seres mais complexos tornam-se insignificantes e sem data. A aranha. Criação de Deus. As aranhas. Até hoje não compreendidas e não domesticadas por nós, humanos. Somos superiores, não admitimos pequenos seres nos incomodando com sua compleição física e com seus hábitos estranhos. O simples fato de existirem aranhas é o suficiente para querermos matá-las. Somos assassinos como a maioria dos animais. De uma forma ou de outra, precisamos garantir nossa sobrevivência matando outras espécies. Tenho certeza de que se as aranhas pudessem também nos matariam, exterminariam a raça humana sem qualquer piedade ou sentimento de culpa. Preciso parar de pensar na aranha. Na morte da aranha. No seu fim trágico e definitivo. É claro que perdi um pouco de mim ao matar a aranha. Sempre invejei sua teia brilhante e suas patas tentaculares e coloridas. Nos momentos de devaneio e solidão, sempre me imaginei aranha sendo morta por um ser gigantesco e implacável, que nas horas vagas e intermináveis perde seu precioso tempo matando aranhas.